segunda-feira, 24 de março de 2025

Ainda estaremos aqui?

Imagem: Nirjon Nakib

ANTONIO SIMPLICIO DE ALMEIDA NETO

É preciso, com urgência, considerar a negligência com que temos tratado o conhecimento histórico nas escolas brasileiras, notadamente as públicas

Aviso: Este não é um comentário sobre o filme Ainda estou aqui e a vitória (merecidíssima!) do Oscar. Quero me deter sobre os temas da memória e do esquecimento, aspectos centrais do filme, e o que eles suscitam sobre o conhecimento histórico e o ensino de história.

A assertiva “ainda estou aqui”, que dá título ao filme, remete ao fio de memória que resta no brilho do olhar de Eunice Paiva, já acometida pelo Alzheimer, quando vê a imagem de Rubens Paiva na televisão. O marido morto pela ditadura militar e sua luta por justiça ainda estavam lá, mesmo que numa última centelha de memória. A frase também remete, por óbvio, à obra de Marcelo Rubens Paiva que inspirou o filme, o escritor que viveu a tragédia política que se abateu sobre sua família, e sobre o povo brasileiro, ainda está aqui e registrou tais acontecimentos em livro.

E o próprio filme, numa espécie de metalinguagem, é a demonstração de que pela arte rememoramos esse passado e o mantemos vivo, como se o diretor e os atores dissessem a cada exibição: Ainda estamos aqui! É provável que boa parte do público que tem comparecido entusiasticamente aos cinemas se sinta vingado, com a recente derrota nas urnas daqueles que intentavam um novo período autoritário na política brasileira.

É inevitável pensar nessa espécie de Alzheimer que acomete o Brasil, em que passados 60 anos do golpe de 1964, ainda conta com inúmeros defensores da ditadura e pedem bis; convivemos bovinamente com um presidente da república que pregava diariamente nas redes sociais um golpe de estado, e que, como veio a público, pôs o plano em ação; embarcamos nas ondas negacionistas, revisionistas e anti-ciência, segundo as quais o nazismo era de esquerda, os africanos quiseram ser escravizados, o golpe militar não foi golpe e a ditadura não foi ditadura. Consta no site do ministério da saúde que a doença de Alzheimer é uma demência neurodegenerativa. Penso que não seja esse o caso do Brasil.

Marcelo Rubens Paiva, autor do livro Ainda estou aqui, lembrou no programa Roda Viva da TV Cultura que foi ao ar em 23/12/2024,[i] que ao participar de uma mesa da FLIP sobre os 50 anos do golpe de 64, logo após as manifestações de 2013 (naquele momento não se imaginava o golpe parlamentar do impeachment na presidenta Dilma Roussef, em agosto/2016), alguns presentes na feira literária se perguntavam, perplexos sobre os manifestantes: “O que essas pessoas estão lendo na escola? O que está sendo ensinado?” (29’22’’).

O questionamento faz algum sentido, não fosse pelo fato de que os participantes daquelas manifestações e das que se seguiram, alguns já pedindo intervenção militar, eram sujeitos de diferentes faixas etárias e que, portanto, estudaram na educação básica nos anos 1960, 1970, 1980, 1990, 2000… Oras, se os responsáveis por essa situação são a escola e seus professores – o que estão lendo e o que está sendo ensinado? –, o problema é mais antigo do que poderíamos supor. Os incautos diriam: “A escola do meu tempo é que era boa”. Não era.

Nas décadas passadas, como fartamente pesquisado, documentado e discutido, os índices de reprovação e de evasão/expulsão nas escolas públicas eram altíssimos, notadamente entre os filhos da classe trabalhadora. Claro que alguém sempre passava pelo funil e chegava ao fim do que hoje chamamos Ensino Médio, e alguns pouquíssimos até ingressavam no ensino superior. Essa educação escolar excludente, decididamente, não era boa. Nas décadas seguintes observamos uma espécie de exclusão por dentro, todos os estudantes eram aprovados em sistemas de promoção automática, mas chegavam ao final do Ensino Médio semialfabetizados. Convenhamos, isso também não é bom.

A culpa invariavelmente recaia (e ainda recai) sobre a escola e seus professores, mas pouco ou nada se fala das políticas públicas voltadas à educação e das finalidades imputadas pelos grupos sociais dominantes à essa instituição. No atual momento, por exemplo, como discutimos no artigo “O Jogo das disputas curriculares”, publicado no site A Terra é Redonda, a finalidade reside fundamentalmente na formação do precariado e na inculcação da ideologia neoliberal na cabeça dos estudantes, daí a criação de “disciplinas” alienígenas como Empreendedorismo e Projeto de Vida.

No caso específico do conhecimento histórico, a responsabilidade recai sempre sobre os professores de história. O que eles estão ensinando sobre a história do Brasil? Quais leituras estão indicando?

Sabe-se que o conhecimento histórico, seja lá qual for, não se constitui apenas nos bancos escolares, mas também em outras formas de socialização: em casa, no botequim, com os amigos, nas igrejas e nos sindicatos, nos jornais e nos livros, nas novelas e nos filmes, na TV aberta e na fechada, cada vez mais nas redes sociais (Facebook, Instagram, X, WhatsApp, Telegram, YouTube, TikTok). Contudo, não se pode negar que a instituição escolar, local onde passamos boa parte das nossas vidas, foi e ainda é a forma hegemônica de socialização.[ii]

Já a disciplina escolar história, consta nos currículos escolares brasileiros desde a 1ª metade do século XIX, passando por diversas conformações, e sempre teve um papel crucial na formação de certa identidade[iii] brasileira e de noção de cidadão/cidadania: cristão, branco, eurocêntrico, cumpridor das leis, pagador de impostos, patriótico, nacionalista, crítico, democrático, transformador, decolonial, antirracista, intercultural, feminista.

No ensino de história a ideia de que “antigamente é que era bom” é uma constante. O ensino dessa disciplina foi muitas vezes factual, laudatório, destacando grandes vultos e eventos notáveis, decoreba de datas e de nomes. No final dos anos 1950 e início dos anos 1960, houve busca de renovação do ensino dessa disciplina, como é o caso, por exemplo, de Emília Viotti da Costa, então professora do Colégio de Aplicação da USP, que em artigo de 1957,[iv] entendia que a História “educa a imaginação”, desenvolve o “espírito crítico” e “capacidade de julgamento” e que a “análise de situações passadas cria o hábito da análise de situações contemporâneas”.

Também Joel Rufino dos Santos e outros, em publicação editada pelo MEC intitulada Coleção História Nova[v] (1964), um pouco antes do golpe militar, propunham “que de uma nova reflexão sobre os dados componentes de nossa história se passe de imediato àquela ação capaz de dar ao povo brasileiro o Brasil pelo qual ele realmente anseia”. Essas iniciativas não duraram muito tempo, com o golpe a ditadura militar promoveu um retrocesso também nesse campo.

Nos anos 1980, com a crise da ditadura, a chamada “abertura lenta, gradual e segura” e o processo de redemocratização, observamos a retomada e o surgimento de diferentes propostas e práticas curriculares inovadoras no ensino de história, assim como houve renovação na produção didática, com novos temas e abordagens.

Houve momentos, anos 1980 e 1990, em que se acreditava numa potencialidade quase revolucionária do ensino de história, certa dimensão utópica[vi] rondava os professores de história, que se investiam de um papel transformador quando lecionavam. Nas décadas mais recentes novas demandas chegaram a essa disciplina escolar: LGBTQIAPN+, racismo, antirracismo, feminismo, gênero. Na 1ª década século XXI foram aprovadas as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, tornando obrigatório o ensino de história e cultura africana e afrobrasileira e indígena, respectivamente, que incidiram diretamente sobre o currículo de história, provocando intenso debate.

Não obstante os avanços e recuos, acertos e equívocos da disciplina História, na última década, não por coincidência com a crise do 2º governo de Dilma Rousseff, fomos atropelados pela BNCC, que ao contrário do tem sido afirmado, não estava prevista na LDB 9394/96, que falava apenas em base nacional comum, não havendo o “curricular”. Tal reforma curricular padronizou conhecimentos e pasteurizou disciplinas em áreas, diluindo a História numa maçaroca chamada Ciências humanas e sociais aplicadas, mistureba que envolve história, sociologia, filosofia e geografia, como se não houvesse especificidades epistemológicas. História deixa de ser “disciplina escolar” para ser “componente curricular”, um componente que pode ser dosado na área e até extirpado, se for o caso.

O chamado Novo Ensino Médio, que de novo não tem nada, criou as tais Trilhas Formativas, que ninguém sabe explicar exatamente o que seja, e se juntou aos novíssimos aliens curriculares (empreendedorismo, projeto de vida, liderança, oratória, et.c), que não possuem lastro em nenhuma ciência de referência e podem ser dadas por qualquer sujeito disponível.

Como no fundo do poço pode ter um alçapão, no estado de São Paulo, a dupla Tarcísio de Freitas e Renato Feder dispensou os livros didáticos do PNLD (selecionados em rigoroso processo seletivo do MEC, adquiridos e distribuídos pela União aos estados) e enfiou goela abaixo da rede pública paulista a plataformização do ensino (que já havia sido feita no Paraná pelo governador Rato Jr. e pelo mesmo Feder), na qual professores são reduzidos a meros passadores de slides de qualidade duvidosa.

Sendo assim, tais professores não mais planejam suas aulas, não escolhem ou elaboram seus materiais didáticos, não selecionam os conteúdos, não avaliam. Apenas executam, acessam plataformas, que controlam suas ações e dos alunos, e despejam algum conteúdo pré-determinado.

E o horror continua, agora, em 2025, fomos informados que as escolas públicas paulistas de tempo parcial e integral no Ensino Médio, com jornada de 7 horas diárias, perderam 35,1% das aulas da área de humanidades; o ensino noturno perdeu 23,8%; as escolas de tempo integral com jornada de 9 horas diárias, foram reduzidas em 22,2% e as turmas de EJA, 57,1%[vii]. Desse modo, temas como ditadura militar ou escravidão no Brasil ficam reduzidos a ½ dúzia de slides a serem aplicados numa hora/aula.

Se a escola pública idílica “de antigamente” não era boa, a atual piorou, e o ensino de história vai de roldão. É certo que as recentes reformas curriculares levadas a cabo na última década por fundações privadas, (que ainda dão as cartas como se não houvesse amanhã, com a anuência dos últimos governos), aniquilaram todo e qualquer debate educacional que havia no país, e fizeram tábula rasa das diversas pesquisas e iniciativas bem-sucedidas dos últimos 50 anos.

Nesse momento em que o tema da ditadura militar, com seu autoritarismo, repressão, violência, perseguições, tortura e arbitrariedade, voltam a despertar o interesse de setores da população, e a disciplina história é chamada a contribuir com o debate, talvez seja adequado perguntarmos: Ainda estaremos aqui?

Antes de indagarmos “O que essas pessoas estão lendo na escola?” e “O que está sendo ensinado pelos professores de história?”, é preciso, com urgência, considerar a negligência com que temos tratado o conhecimento histórico nas escolas brasileiras, notadamente as públicas. Ainda estaremos aqui? No que depender da BNCC, do “Novo” Ensino Médio e da plataformização do ensino escolar, receio que a resposta seja negativa. Não estaremos.

*Antonio Simplicio de Almeida Neto é professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Autor, entre outros livros, de Representações utópicas no ensino de história (Ed. Unifesp) [https://amzn.to/4bYIdly]

Notas


[i] https://www.youtube.com/live/CSRTLbcmgjs?si=mH3yz8Qxz0Z5n0k1

[ii] VINCENT, Guy; LAHIRE, Bernard e THIN, Daniel. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 33, p.p. 7-48, jun. 2001.

[iii] BITTENCOURT, Circe. Identidades e ensino da história no Brasil. in CARRETERO, Mário; ROSA, Alberto e GONZÁLES, Maria Fernanda (orgs.). Ensino da história e memória coletiva. Porto alegre: Artmed, 2007.

[iv] COSTA, Emília Viotti da. Os Objetivos do Ensino de História no Curso Secundário. Revista de História, 29. São Paulo, 1957.

[v] SANTOS, Joel Rufino dos et al. Coleção História Nova. Rio de Janeiro: MEC, 1964.

[vi] ALMEIDA NETO, Antonio Simplicio de. Representações utópicas no ensino de história. SP: Editora Unifesp, 2011.

[vii] https://aterraeredonda.com.br/sao-paulo-escolas-com-menos-ciencias-humanas-2/



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