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Como fazer com que os índices melhores, como fazer com que as pessoas leiam e escrevam bem, se muitos sites de notícias indicam o tempo previsto de leitura de determinada reportagem? Já não basta o livro ter se tornado artigo de luxo? Então a pessoa decide se vai ler, não pelo assunto ser interessante, mas pelo menor tempo de leitura?
Giam C. C. Miceli
Há poucos dias, foi noticiado um fato que, mesmo não sendo novo, é sempre digno de lamentação: cerca de um terço da população brasileira não tem acesso à escrita, à leitura e a cálculos básicos com uma qualidade mínima. O chamado analfabetismo funcional difere do analfabetismo, pois, no caso do analfabetismo funcional, as pessoas sabem ler e escrever, sendo que, no entanto, os atos de saber ler e saber escrever não ultrapassam a barreira de uma atividade meramente mecânica. Em outras palavras: as pessoas que se enquadram neste dado estatístico não exercem um domínio da leitura, da escrita e da matemática básica de modo que tais conhecimentos sirvam como ferramentas para que tais pessoas possam conduzir suas vidas cotidianas. É como se faltasse algo que não poderia, em hipótese alguma, faltar.
Diante da tarefa, aqui assumida, de buscar as raízes do problema e de apontar para possibilidades, gostaria de começar com um exemplo verídico de um professor que, ao longo de seus estudos na pós-graduação, acabou por se deparar com a obra de Antonio Gramsci, o famoso escritor de Cadernos do Cárcere e Cartas do Cárcere. Pelos títulos, podemos deduzir que o autor foi preso. Ele foi preso, ficou detido ao longo do regime fascista que assolou a Itália e, durante o tempo na prisão, produziu sua obra. A começar pelo fato de o professor estudioso sequer conseguir pronunciar o nome do pensador italiano, posso acrescentar o fato de o docente não ter uma vida nada compatível com o que pregava o intelectual que ele dizia estudar, na medida em pequenos escândalos carimbam o currículo do aspirante a intelectual gramsciano. Trata-se do típico caso da pessoa que lê sem entender o que está lendo. É uma leitura mecânica, rasa, sem a devida compreensão daquilo que o texto nos fornece. Isso é o analfabetismo funcional. Por sorte, é um caso excepcional, um caso que jamais representaria o universo docente brasileiro. No entanto, uma pessoa com tais requisitos formando centenas de outras pessoas é uma bomba-relógio para a sociedade.
Com isso, essa coluna possui a seguinte ossatura: em primeiro lugar, tentarei explicar de que modo o analfabetismo funcional avançou, considerando causas históricas, sociais e territoriais. Em segundo lugar, algumas possibilidades serão oferecidas. É de modo antecipado que afirmo ser impossível combater o problema sem que políticas que busquem a igualdade sejam efetivadas pelo ou /para o povo.
Considerando as causas históricas, em primeiro lugar, é importante lembrar que a educação escolar não era para todos. A educação formal era bem restrita em termos quantitativos. Poucas eram as pessoas por ela atendidas. Em termos espaciais, é seguro afirmar que as escolas emergem, no caso brasileiro, como fenômeno urbano. Até 1940, a maior parte da população vivia no campo, isso deve ser dito. Além de uma restrição espacial propriamente dita, a instituição escolar atendia a poucas crianças, fato que só passa a sofrer uma reversão por volta dos anos 1930. Aí passamos a contar com uma ideia de povo e uma ideia de escola responsável por formar o povo que passa a se identificar, pela via da educação formal, com uma ideia de nação.
Essa restrição socioespacial – a má distribuição de escolas em um país gigantesco com maioria populacional vivendo no campo, além de uma escola que então desempenhava a função de formar as elites – leva alguns historiadores da educação a afirmar que houve um descompasso entre uma escola que deveria manter certa qualidade pedagógica e uma escola que, então, passava a receber mais e mais pessoas. Isto não quer dizer que o povo, ao adentrar a escola, gerou uma queda de qualidade. Isso tem a ver com um sistema escolar que, por questões de planejamento, de concepções de políticas públicas e por uma visão elitista de cidadania não se projetou para que as massas fossem bem recebidas como sempre mereceram ser. Indo além, não é necessário dizer que muitos dos que conseguiam adentrar o espaço escolar para estudar não saíam com os estudos concluídos. Havia peneiras internas, como o exame de admissão. A regra era não concluir os estudos.
Para além da questão das desigualdades territoriais e de renda, não se pode esquecer que a função da escola – e a forma como tal função foi desempenhada ao longo do tempo, mudou. A instituição escolar não se dissocia da sociedade, pelo contrário. Cabe a ela sistematizar, a partir da contribuição das variadas ciências e campos do conhecimento, a vida e o cotidiano dos e /das estudantes. É aí que reside a história da educação; é sobre essas mudanças que a história da educação se debruça.
Historicamente, os dados não são animadores: temos um sistema escolar que se abriu às massas há menos de um século e, ainda que “aberto”, várias eram as barreiras que acabavam por excluir a maioria. O primeiro resultado, então, é um país escravocrata em que as camadas mais pobres naturalizam a exclusão escolar, que deve ser entendida como a total falta de acesso à escola ou como uma falta parcial decorrente das dificuldades impostas.
Nos dias atuais, temos um neoliberalismo sádico – que vem para afetar os que já eram afetados – que, dentro de sua psicopatia mercantil, busca transformar tudo que há de mais básico em mercadoria e em lucro (para alguns poucos). Essa mercantilização totalitária acaba por esgarçar, ou mesmo romper, vínculos básicos. É fundamental ter ciência de que qualquer vínculo precisa de tempo para que seja constituído. A partir do momento em que o tempo vira mercadoria, os vínculos acabam por sofrer rupturas. A fluidez, a velocidade, o trabalho (precário) por aplicativos, o mito do “faça seu horário”, tudo isso tira o tempo do vínculo. E qual a importância deste vínculo, afinal? O que ele tem a ver com o analfabetismo funcional que presenciamos? O vínculo, no fim das contas, significava uma breve fiscalização, por parte dos adultos, para ver se as crianças e jovens estavam estudando e aprendendo algo na escola.
Como fazer com que os índices melhorem, como fazer com que as pessoas leiam e escrevam bem, se muitos sites de notícias indicam o tempo previsto de leitura de determinada reportagem? Já não basta o livro ter se tornado artigo de luxo? Então a pessoa decide se vai ler, não pelo assunto ser interessante, mas pelo menor tempo de leitura? Soma-se a isso a inteligência artificial. Soma-se a isso, também, uma extrema direita apaixonada pela estupidez e que busca colocar toda e qualquer instituição produtora e difusora de conhecimento em situação de descrédito.
Todos esses apontamentos mostram que o caminho para resolver tal questão não é fácil. Foram muitos anos de destruição, privação e exclusão, o que exige, também, muitos anos de reconstrução. Estímulo à leitura, obrigatoriedade de bibliotecas boas em todas as escolas com amplos horários de funcionamento e com profissionais qualificados, estímulo à escrita e ao uso da criatividade, políticas públicas voltadas à valorização e divulgação da literatura nacional, um sistema público de ensino que acolha a criança e sua família para além de afazeres burocráticos e obrigatórios. Enfim, muitas são as possibilidades. Porém, tal empreitada não deve ser assumida por quem ora para pneu, nem para quem rumina ódio e nem para quem acha que está fazendo muito ao andar, no auge de sua cafonice, com a bandeira do Brasil sobre seu paletó puído.
Sobre os 29%: não é apenas uma questão de índice, é uma questão de dignidade, de tentar reconstituir uma ideia de povo e de gente, que em tempos de neoliberalismo, individualismo e uma falsa, muito falsa sensação de liberdade, acabou por desaparecer.
Giam C. C. Miceli é professor da Geografia da Educação Básica.
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