Militarização da educação pública: ideologia acima de tudo, lucro acima de todos

(Foto: Alesp)

"Após a implementação nas redes estaduais e municipais, nada garante que a rede federal de ensino estará imune ao processo de militarização"

Thiago Esteves
brasil247.com/

Inicialmente, é preciso esclarecer aos leitores e leitoras que uma escola cívico-militar não é uma escola militar. As escolas militares são instituições de ensino vinculadas ao Ministério da Defesa e, em geral, voltadas para a formação de futuros oficiais das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica). O ingresso nessas escolas é garantido, prioritariamente, aos filhos de militares, sendo que as vagas excedentes são preenchidas por meio de processos de seleção que envolvem provas e entrevistas. O corpo docente é composto por militares e professores civis concursados e o currículo escolar contempla os componentes curriculares da Formação Geral Básica (Arte, Biologia, Educação Física, Filosofia, Física, Geografia, História, Língua Estrangeira, Língua Portuguesa, Matemática, Química e Sociologia), além de disciplinas voltadas à formação militar.

Já as escolas cívico-militares são escolas públicas estaduais ou municipais, que recebem “apoio” de militares da reserva (aposentados) ou da ativa das Forças Auxiliares (Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Guarda Municipal) para auxiliar em funções administrativas e disciplinares. O ingresso de estudantes é realizado de diferentes formas, seja com vagas reservadas para filhos de militares (que não necessitam passar por processos de seleção), sorteio, entrevistas e análise curricular. Neste ponto, chamo a atenção para a frequência com que estudantes matriculados em escolas que foram militarizadas são transferidos compulsoriamente para unidades de ensino não militarizadas. Esses estudantes “transferidos” apresentam um perfil comum: são oriundos de famílias de baixa renda, estão fora do fluxo escolar regular (com trajetórias educacionais marcadas por abandono ou reprovação), participam ativamente de movimentos estudantis ou sociais (como grêmios escolares) ou possuem deficiências físicas ou problemas de saúde mental. Os currículos dessas escolas contemplam os componentes da Formação Geral Básica e, em alguns casos, nos Itinerários Formativos próprios, são ofertadas disciplinas voltadas à disciplinarização, à moralidade e ao civismo.No primeiro semestre de 2025 presenciamos a intensificação do projeto de militarização de escolas públicas, também chamadas de escolas cívico-militares, em ao menos três estados: Mato Grosso, Minas Gerais e São Paulo. Não por coincidência, são estados cujos governadores, por convicção ideológica ou oportunismo eleitoral, alinharam-se com a extrema direita. Cumpre-nos destacar que o processo de militarização das escolas não se restringe a esses três estados, assim como ressaltamos que este tipo de escola tem encontrado grande se pelos municípios brasileiros.

Mas quais são os motivos que levariam governos estaduais e municipais a investirem em um tipo de instituição educacional que não encontra amparo legal na Lei nº 9.394/1996, também conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), não apresenta qualquer evidência científica de melhoria da qualidade do ensino ofertado – o que pode ser comprovado pelos dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) –, não consegue demonstrar que seriam instituições mais seguras, com menos conflitos ou casos de violência que as demais, e, além disso, custam aos cofres públicos muito mais do que uma escola que não passou pelo processo de militarização?

Além do caráter ideológico desse tipo de instituição, que se estende aos demais aspectos da vida social das pessoas, as escolas cívico-militares tornaram-se uma grande fonte de lucro para um seleto grupo de pessoas – que não são os professores e professoras. Além dos militares alocados nessas escolas, que recebem pagamentos extras (acumulados aos seus salários) – valores muito superiores ao Piso Nacional do Magistério, que sequer é pago por diversos estados e municípios – para desempenhar funções pouco claras, existe também um pequeno grupo de empresários que tem lucrado com contratos de consultoria para a implementação das escolas cívico-militares. Esses empresários ainda oferecem uma gama de serviços, tais como uniformes, materiais didáticos, terceirização de mão de obra, reforma e manutenção da estrutura física dessas instituições. Afinal, assim como os quartéis, as escolas cívico-militares precisam aparentar rigor, ordem e disciplina – ainda que apenas na estética –, o que demanda investimentos constantes em fardamento, padronização visual, infraestrutura e vigilância, transformando essas instituições em vitrines simbólicas de um projeto autoritário de educação, altamente custoso para os cofres públicos e desvinculado das reais necessidades pedagógicas da escola pública brasileira.

Mas ainda existe um outro espaço no qual esse empresariado alinhado à extrema direita – por ideologia ou por lucro fácil – está de olho e que pode multiplicar ainda mais seus ganhos: a gestão escolar das unidades de ensino. Levando em consideração que tanto a implementação quanto o modelo de gestão das escolas cívico-militares são bastante diversos, em algumas dessas unidades apenas a gestão pedagógica permanece sob responsabilidade dos profissionais da educação. As demais áreas da escola passam a ser geridas por profissionais externos ao sistema educacional; em certos casos, um militar assume a função de gestor administrativo, tornando-se responsável pela administração dos recursos financeiros da unidade escolar. Isso inclui o controle de compras que vão desde itens como canetas e fotocópias até papel higiênico e merenda escolar.

Com isso, os profissionais da educação – professoras, professores e demais servidores – deixam de participar da gestão escolar. Em um contexto de avanço da privatização da educação, como observado recentemente no estado do Paraná, as escolas cívico-militares têm se configurado como um imenso laboratório para a gestão privada do ensino público em nosso país.

Quando consideramos que a militarização das escolas públicas pode representar uma etapa de um processo mais amplo — cujo desfecho é a privatização das unidades escolares —, compreendemos melhor o plano do governador Romeu Zema (Novo). Apontado pela mídia hegemônica e comercial como um grande gestor público, Zema governa um estado onde 80% do quadro docente da rede estadual é composto por professores contratados temporariamente, sem vínculo empregatício e sem direitos trabalhistas. Além disso, Minas Gerais paga um dos menores salários do país à categoria docente e apresenta um dos piores índices do Ideb. Ainda assim, o governador pretende militarizar 700 escolas estaduais.

E para aqueles que acreditam estar a salvo: após a implementação nas redes estaduais e municipais, nada garante que a rede federal de ensino estará imune ao processo de militarização.



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