O destino precário da universidade

Imagem: musicFactory lehmannsound

Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*

Entre a tragédia e a utopia, a universidade inacabada revela-se como espelho de um país fraturado – mas também como campo de batalha onde a dependência pode ser contestada e reinventada

1.

A universidade brasileira sempre se apresentou como uma promessa de futuro, uma instituição capaz de carregar no seu interior as contradições de um país marcado pelo capitalismo dependente. No entanto, como mostra Universidade inacabada: razão e precariedade, essa promessa nunca se cumpriu de modo integral.

A razão de ser da universidade no Brasil é atravessada por um duplo movimento: de um lado, o desejo de modernização e integração internacional, de outro, a reprodução da desigualdade estrutural que marca nossa formação social. Esse movimento faz da universidade uma instituição permanentemente incompleta, incapaz de realizar plenamente sua função social, mas sempre mobilizada em torno da esperança de que o inacabamento um dia se resolva.

A ideia de precariedade, no livro, não é meramente um diagnóstico sobre as condições de trabalho docente ou sobre a fragilidade das políticas públicas de financiamento. Trata-se de uma categoria que exprime a própria condição histórica da universidade no Brasil, atravessada pela dependência econômica, pela subordinação intelectual e pela captura de sua agenda por interesses externos ao projeto de emancipação nacional.

A precariedade é estrutural, não conjuntural, e por isso não pode ser resolvida por medidas superficiais. A universidade é fraturada em sua origem porque o país em que se inscreve é fraturado em sua formação.

O capitalismo dependente exige da universidade funções específicas, que não são as mesmas do centro. No lugar de se consolidar como espaço de plena produção de conhecimento autônomo, ela é chamada a atender às demandas de adaptação tecnológica, de qualificação mínima da força de trabalho e de legitimação de políticas estatais de controle social. A precariedade aparece como marca constitutiva porque o horizonte estratégico da universidade é limitado pelos imperativos de uma sociedade cujo desenvolvimento não é soberano, mas subordinado às cadeias globais de valor.

Esse traço estrutural é também cultural. A universidade brasileira convive com a dualidade de uma elite acadêmica que busca reconhecimento internacional, submetendo-se a rankings e padrões globais, e de uma massa estudantil que acessa o ensino superior em condições de desigualdade brutal. A universidade inacabada é, nesse sentido, a materialização daquilo que Francisco de Oliveira chamou de razão dualista: uma modernização que nunca se universaliza, que produz ilhas de excelência cercadas de oceanos de exclusão. A precariedade não é apenas falta de recursos, mas também falta de integração orgânica entre universidade e sociedade.

2.

O livro mostra como essa situação gera uma profunda contradição no interior da instituição. Por um lado, há professores e pesquisadores capazes de produzir ciência de alto nível, disputar editais internacionais e dialogar com o estado da arte de suas áreas. Por outro, há salas de aula sucateadas, bibliotecas desatualizadas, servidores precarizados e estudantes que enfrentam fome, transporte precário e dificuldades de permanência. A convivência desses dois mundos dentro da mesma instituição faz da universidade um espaço de permanente tensão entre excelência e abandono.

A expansão do ensino superior nas últimas décadas intensificou essa dualidade. Políticas como o Reuni abriram vagas e criaram novos campi, mas sem garantir as condições materiais equivalentes para que a universidade pudesse sustentar a qualidade acadêmica prometida. Assim, a precariedade ganhou uma nova face: a expansão sem infraestrutura adequada. A universidade cresce, mas cresce capenga, incapaz de assegurar a mesma densidade científica em todos os seus espaços.

Esse processo está vinculado à financeirização do Estado e da própria educação. A universidade é chamada a funcionar sob a lógica da eficiência gerencial, da produtividade medida em números e da captação de recursos externos. Em vez de ser financiada pelo fundo público como direito social, passa a depender de parcerias, convênios e editais que submetem sua agenda de pesquisa a interesses do mercado e de organismos internacionais.

O conhecimento deixa de ser tratado como bem comum e passa a ser mercadoria, avaliada por indicadores e rankings que traduzem prestígio acadêmico em ativo simbólico e financeiro.

O resultado é a intensificação da alienação do trabalho docente e da vida estudantil. Professores se veem obrigados a publicar em revistas indexadas de alto impacto, muitas vezes alheias à realidade nacional, apenas para garantir pontuação nos sistemas de avaliação. Estudantes são pressionados a concluir seus cursos rapidamente, com pouco espaço para reflexão crítica, porque a lógica do mercado exige produtividade e empregabilidade. Nesse contexto, a universidade deixa de formar sujeitos capazes de transformar a sociedade e passa a treinar mão de obra adaptável às exigências do capital.

Ao mesmo tempo, a precariedade se manifesta na subjetividade. O adoecimento docente, a sobrecarga de trabalho, o cansaço permanente e a ansiedade estudantil são sintomas de uma instituição que perdeu parte de sua vitalidade crítica. A universidade, que deveria ser espaço de criação e liberdade intelectual, torna-se espaço de cobrança, controle e vigilância permanente. Essa é uma das faces mais perversas do inacabamento: a captura da subjetividade pela lógica da performance acadêmica.

3.

A crítica central do livro é que essa condição não é acidental, mas estrutural. A universidade inacabada é a expressão da sociedade inacabada. O Brasil, enquanto país dependente, organiza suas instituições de modo a reproduzir a lógica da subordinação. A universidade é chamada a legitimar esse processo, ao mesmo tempo em que abriga em seu interior focos de resistência e insurgência. Ela não é apenas vítima, mas também agente da reprodução da dependência.

A resistência, contudo, está presente. Professores que insistem em formar criticamente, estudantes que se organizam em movimentos sociais, iniciativas de extensão que buscam diálogo com comunidades populares. Esses são sinais de que a precariedade não esgota o potencial transformador da universidade. O inacabado, paradoxalmente, abre espaço para a insurgência. Porque o que não está concluído pode ser retomado, refeito, reinventado.

A universidade inacabada, então, é ao mesmo tempo tragédia e possibilidade. Tragédia porque mostra o quanto as estruturas da dependência aprisionam a instituição. Possibilidade porque revela que nada está definitivamente selado: o futuro ainda pode ser disputado. É nesse ponto que o livro encontra sua densidade crítica.

O argumento se fortalece quando consideramos a temporalidade. A universidade brasileira vive em permanente atraso em relação ao centro capitalista, mas esse atraso não é apenas defasagem técnica; é parte do mecanismo da dependência. O atraso é produzido e mantido para que o país ocupe lugar subalterno no sistema mundial. A universidade inacabada é, portanto, a expressão acadêmica desse atraso estrutural.

Mas, ao mesmo tempo, o inacabamento permite a emergência de experiências singulares. A convivência entre tradição e precariedade gera formas híbridas de produção de conhecimento, que podem dar origem a caminhos inéditos. A questão é se esses caminhos serão apropriados pela lógica do capital ou se poderão se converter em alternativas emancipatórias.

É aqui que o livro propõe uma crítica profunda à ideia de modernização acadêmica. Modernizar, no Brasil, muitas vezes significou apenas importar modelos estrangeiros, sem considerar as condições concretas da nossa sociedade. Essa importação acrítica reforça a dualidade: cria centros de excelência à custa de periferias acadêmicas abandonadas. A universidade inacabada é, portanto, também vítima da ilusão da modernização conservadora.

4.

Um elemento decisivo é o trabalho. A análise do livro mostra como a precarização do trabalho docente e técnico-administrativo se tornou regra. Contratos temporários, terceirizações, sobrecarga de tarefas burocráticas e exigências de produtividade corroem a qualidade da vida universitária. Essa degradação do trabalho é funcional ao capitalismo dependente, pois garante uma universidade barata, eficiente em termos de custo, mas incapaz de sustentar uma formação plena e emancipatória.

Por outro lado, o livro ressalta que a precariedade do trabalho não apaga a centralidade do professor como figura que carrega a missão de manter viva a chama crítica da universidade. Mesmo exausto e alienado, o professor ainda é depositário de um saber que pode se converter em resistência. O inacabado, nesse sentido, é também chamado à responsabilidade: não se pode abandonar a luta pelo sentido público da universidade.

A relação entre universidade e Estado é outro ponto fulcral. O Estado brasileiro, especialmente sob as políticas neoliberais, trata a universidade como gasto, não como investimento. O novo arcabouço fiscal, a austeridade e as reformas administrativas corroem a base material da instituição. A universidade é convidada a buscar no mercado aquilo que deveria receber do fundo público. Esse movimento transfere para dentro da instituição a lógica da mercadoria e aprofunda sua condição de inacabada.

Ao mesmo tempo, o livro mostra que o Estado não é apenas agente de destruição. Em momentos específicos da história, como nas políticas de expansão, houve também reconhecimento da importância da universidade. Mas esse reconhecimento foi sempre parcial, contraditório, subordinado a interesses imediatos e eleitorais. Nunca houve um projeto de Estado capaz de consolidar a universidade como bem público universal.

A universidade inacabada é, assim, reflexo da ausência de um projeto nacional de desenvolvimento autônomo. Sem esse projeto, a instituição é condenada a viver na precariedade, oscilando entre avanços tímidos e retrocessos brutais. Sua condição é sempre instável, sempre sob ameaça, sempre incompleta.

No entanto, o livro insiste que é nesse terreno instável que podem nascer alternativas. A universidade inacabada pode ser também universidade insurgente. Quando os sujeitos reconhecem que a precariedade é estrutural e não acidental, podem transformar o inacabamento em espaço de luta. O que parecia fraqueza torna-se possibilidade.

Essa insurgência não virá de cima, mas de dentro. Do cotidiano docente, da mobilização estudantil, da extensão que se abre aos territórios, da pesquisa que recusa ser apenas mercadoria. O inacabado pode ser transfigurado em força criadora, desde que haja consciência crítica e ação coletiva.

O núcleo do livro está nessa dialética entre tragédia e possibilidade. A universidade é inacabada porque vive sob a lógica da dependência e da financeirização. Mas é inacabada também porque ainda pode ser feita, refeita, reinventada. O inacabamento é denúncia e convocação.

Ao concluir, percebe-se que a obra não oferece uma solução fácil ou imediata. Ela nos lembra que a luta pela universidade pública é inseparável da luta por um país soberano. Sem romper a dependência, a universidade continuará inacabada. Mas sem lutar pela universidade, também não haverá condições para romper a dependência. Trata-se de uma contradição que exige compromisso político e intelectual de longo prazo.

*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]

Referência

SILVA JÚNIOR, João dos Reis. Universidade inacabada: razão e precariedade. Campinas: Mercado de Letras, 2025.



 

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