O futuro da universidade depende de um duplo movimento: por um lado, reinventar-se diante das pressões financeiras e tecnológicas; por outro, reconhecer que os países em desenvolvimento não possuem apenas carências, mas também potencialidades específicas para propor novos modelos universitários mais inclusivos, descolonizados e socialmente enraizados sem perder de vista a liberdade de crítica e a autonomia do pensamento
Raul Borges Guimarães
O editorial da revista Nature (setembro, 2025)[1] aponta que as universidades estão no olho de uma tempestade: precisam inovar para sobreviver. O diagnóstico não é trivial. Depois de séculos de protagonismo na produção de saber, de expansão em escala global e de crescente massificação, as instituições de ensino superior encontram-se pressionadas por crises de financiamento, transformações tecnológicas aceleradas e desconfiança social quanto ao seu papel. A Nature sugere que, assim como tantas vezes no passado, as universidades devem se reinventar para não perder relevância. É preciso reafirmar que o verdeiro engajamento público da universidade depende da sua independência intelectual. Só assim será possível reinventar a universidade sem diluir aquilo que a torna indispensável à democracia e ao futuro da liberdade de cátedra e do pensamento crítico.
Em um contexto que exige diálogo social e prestação de contas públicas, A Nature já advertia em 2017[2], que pesquisadores e instituições deveriam “alcançar para além da bolha da ciência”, tornando visível o valor social do conhecimento. Esse chamado dialoga com uma literatura crítica mais ampla, que há décadas insiste na necessidade de repensar o modelo tradicional de universidade, herdado de matrizes eurocêntricas, elitistas e cada vez mais mercantilizadas. Autores como Achille Mbembe (2015, 2016) e Boaventura de Sousa Santos (2008) denunciam que a universidade ocidental não apenas enfrenta problemas de sustentabilidade financeira, mas carrega limitações epistemológicas e políticas profundas. Outros, como Philip Altbach (2013) e Jamil Salmi (2009), ressaltam que o desafio de construir universidades de pesquisa nos países em desenvolvimento não se resolve com simples imitação dos centros do Norte Global. Raewyn Connell (2017) acrescenta que a teoria produzida no Sul precisa se tornar base legítima do conhecimento universitário global.
Combinando o alerta da Nature e as críticas da literatura, este ensaio sustenta que O futuro da universidade depende de um duplo movimento: por um lado, reinventar-se diante das pressões financeiras e tecnológicas; por outro, reconhecer que os países em desenvolvimento não possuem apenas carências, mas também potencialidades específicas para propor novos modelos universitários mais inclusivos, descolonizados e socialmente enraizados sem perder de vista a liberdade de crítica e a autonomia do pensamento
O modelo tradicional em xeque
O editorial da Nature sublinha que, após a Segunda Guerra Mundial, o ensino superior deixou de ser privilégio das elites religiosas ou seculares e tornou-se base ampla de educação e pesquisa. O número de estudantes no mundo saltou de 10 milhões, em 1950, para mais de 264 milhões em 2023. Essa expansão massiva, embora positiva, trouxe tensões.
Primeiro, a crise do financiamento. Governos que antes custeavam as universidades como parte da educação pública passaram a transferir custos para estudantes e famílias, especialmente após a crise financeira de 2008. Esse processo converteu o ensino superior em mercadoria, sujeita à lógica de mercado, como mostram Santos e Almeida Filho (2008), ao analisar a mercantilização e a erosão do caráter público da universidade. O resultado é o endividamento estudantil, a precarização do trabalho docente e a captura de agendas de pesquisa por interesses privados.
Segundo, a homogeneização. Com a ascensão da avaliação por rankings internacionais, modelos de “universidade de classe mundial” tornaram-se referência global, como descreve Salmi (2009). Essa padronização privilegia indicadores de publicações, patentes e parcerias empresariais, desconsiderando contextos locais e funções sociais específicas.
Terceiro, a perda de confiança social. Em muitos países, as universidades são acusadas de elitismo, de não representar a diversidade de suas sociedades e de se afastar das demandas sociais. A politização crescente – que leva governos a cortar orçamentos, restringir vistos e limitar intercâmbios – agrava a crise de legitimidade.
Nesse cenário, como insiste Marginson (2022, 2023), a universidade corre o risco de perder sua identidade como bem público global, reduzida a prestadora de serviços educacionais e geradora de lucros. Antes de ceder ao imperatico da inovação e da utilidade imediata é preciso a defesa intransigente da independência intelectual do ambiente universitário e da liberdade de ensinar, pesquisar e pensar.
Descolonizar e diversificar saberes
Mbembe (2015, 2016) propõe que a crise da universidade não é apenas financeira, mas também epistêmica. O modelo eurocêntrico consolidado a partir da modernidade colonial construiu currículos, disciplinas e formas de avaliação que marginalizam saberes não ocidentais. A universidade tornou-se guardiã de um arquivo excludente, que silencia tradições intelectuais africanas, indígenas, asiáticas ou latino- americanas.
Nesse sentido, reinventar a universidade exige um processo de descolonização: revisar currículos, abrir espaço para epistemologias plurais, valorizar línguas e memórias locais. Connell (2017) converge ao argumentar que as “teorias do Sul” não devem ser apenas complemento exótico, mas parte constitutiva da produção de conhecimento global. Isso significa, por exemplo, reconhecer contribuições latino-americanas para teorias críticas da dependência, africanas para estudos pós-coloniais ou indianas para filosofia política.
Boaventura de Sousa Santos (2008) sugere uma “ecologia de saberes”, na qual o conhecimento científico se articule com saberes populares e tradicionais. Para ele, a universidade do século XXI deve ser intercultural, traduzindo e dialogando com diferentes formas de conhecimento.
Ao incorporar essas perspectivas, as universidades não apenas sobrevivem, mas se tornam mais relevantes para sociedades plurais e desiguais.
O papel das universidades do Sul Global
Enquanto a Nature enfatiza a crise geral, autores como Altbach (2013) e Salmi (2009) chamam atenção para os países em desenvolvimento. O desafio aqui é duplo: ampliar o acesso ao ensino superior para populações historicamente excluídas e, ao mesmo tempo, construir universidades de pesquisa capazes de sustentar o desenvolvimento nacional.
Altbach reconhece que universidades do Sul não precisam imitar Harvard ou Oxford. Em vez disso, devem articular excelência científica com relevância local. Salmi adverte contra a obsessão com “world-class universities”, defendendo que a prioridade deve ser criar sistemas de ensino superior diversificados, com instituições de diferentes perfis, todas comprometidas com qualidade.
Na América Latina, experiências como a Reforma Universitária de Córdoba (1918) já apontavam para universidades autônomas, democráticas e socialmente enraizadas. Hoje, esse espírito renova-se em propostas de extensão crítica, de integração com movimentos sociais e de produção de ciência orientada para problemas nacionais – saúde, desigualdade, sustentabilidade. Não é por acaso que a política de extensão universitária está em plena expansão nas 180 universidade públicas brasileiras.
Portanto, os países em desenvolvimento não são apenas receptores de modelos, mas laboratórios vivos para novas universidades.
Conhecimento como bem público e comum
A Nature alerta que o financiamento da pesquisa depende de convencer governos e eleitores de que investir em ciência é investir em crescimento. Contudo, essa justificativa economicista é insuficiente. Marginson (2023) insiste que a universidade deve ser entendida como produtora de bens comuns globais – saberes que transcendem fronteiras e beneficiam coletividades.
O relatório da UNESCO (2022), Transforming Knowledge for Just and Sustainable Futures, reforça essa ideia: o conhecimento precisa ser orientado para justiça social e sustentabilidade planetária. O relatório Futures of Education (ONU, 2022) aponta que reimaginar a educação superior é essencial para enfrentar crises globais, do clima à desigualdade.
Assim, a sobrevivência da universidade não depende apenas de provar seu valor econômico, mas de afirmar seu papel na produção de saberes indispensáveis à sobrevivência coletiva. Trata-se de um compromisso ético e político.
Crítica ao produtivismo e alternativas
A expansão da educação superior foi acompanhada pela intensificação do produtivismo acadêmico. Publicar em revistas indexadas, captar recursos e aparecer em rankings tornou se critério de avaliação. Como nota Agarwal (2015), esse modelo sufoca a imaginação científica e limita a capacidade de inovação real.
O artigo de Glauco Arbix sobre a DeepSeek, startup chinesa que rompeu com a lógica dominante da IA, ilustra uma lição para as universidades: muitas vezes, a inovação nasce não da escala ou do acúmulo de recursos, mas da criatividade para buscar caminhos alternativos. O “lean coding” pode inspirar um “lean research”: pesquisa enxuta, colaborativa, voltada para problemas concretos e com impacto social (Arbix, 2025).
Nesse sentido, universidades do Sul Global, acostumadas a operar com restrições orçamentárias, podem liderar movimentos de inovação que valorizem parcerias locais, tecnologias abertas e interdisciplinaridade.
Universidades e inovação social
O editorial da Nature lembra que as universidades são motores de mobilidade social e crescimento econômico. Mas essa visão deve ser expandida: como ressaltam Boaventura e Mbembe, seu papel é também formar cidadãos críticos e contribuir para justiça social. Exemplos abundam: universidades africanas que desenvolvem pesquisas sobre saúde comunitária; latino-americanas que articulam extensão universitária a movimentos sociais; indianas que inovam em agricultura sustentável.
Essas experiências mostram que a universidade pode ser centro de inovação social, não apenas tecnológica. E que seu valor se mede pela transformação da vida das pessoas, não apenas por patentes ou rankings.
Geopolítica do conhecimento
A revista destaca que as restrições a vistos e à imigração fragilizam a cooperação científica. Arbix (2025) mostra que o protecionismo dos Estados Unidos em relação à China ao tentar restringir o acesso a chips e tecnologias, não conteve a inovação, mas, ao contrário, estimulou o desenvolvimento de alternativas.
No campo universitário, a lógica é semelhante. Barreiras impostas a estudantes e pesquisadores do Sul limitam a circulação do conhecimento. Mas, paradoxalmente, podem estimular soluções próprias: redes regionais de cooperação, uso de tecnologias abertas, valorização de línguas locais.
O desafio é construir uma geopolítica solidária do conhecimento, na qual universidades do Sul dialoguem entre si e com o Norte em condições mais simétricas. Isso exige políticas públicas, financiamento estável e reconhecimento da diversidade epistemológica, sem perder de vista que a universidade não deve ser concebida como uma “força produtiva direta” ou simplesmente como prestadora de serviços para o mercado (Chauí, 2003). A universidade pública, historicamente concebida como uma instituição social, deve manter sua vocação própria de formação, de reflexão crítica e democratização do saber (Cunha,  2007).
Síntese e perspectivas
O editorial está correto ao afirmar que as universidades precisam inovar para sobreviver. Mas a análise crítica da literatura amplia essa conclusão:
- O problema não é apenas financeiro, mas também epistêmico e político;
- O modelo eurocêntrico e mercantilizado não responde às necessidades do século XXI;
- Países em desenvolvimento não devem apenas copiar o Norte, mas propor modelos próprios, baseados em relevância social e pluralidade de saberes, tornando cada vez mais o ensino e a pesquisa indissociáveis da extensão universitária;
- O conhecimento deve ser tratado como bem comum global, não como mercadoria;
- A inovação universitária deve ser interdisciplinar e socialmente enraizada;
- A cooperação internacional precisa ser fortalecida, mas sob novas bases de
Portanto, a tempestade que atravessa as universidades é também oportunidade. Se souberem reinventar-se, descolonizar-se e reorientar-se para os desafios do nosso tempo, elas não apenas sobreviverão, mas serão forças decisivas para sociedades mais justas e sustentáveis.
O futuro da universidade não está garantido, mas pode ser construído – e os países do Sul Global têm papel central nesse processo. Como lembra Mbembe, “não se trata de incluir o Sul no cânone, mas de reinventar o cânone”. Essa é a lição que tanto a Nature quanto os críticos convergem em apontar: a universidade deve mudar para continuar a existir.
Raul Borges Guimarães é  professor titular do Departamento de Geografia e Pró-reitor de extensão universitária e cultura da Unesp.
Referências
AGARWAL, Pawan. Next two decades of higher education: A developing countries perspective. Higher Education Forum, v. 12, p. 1-20, 2015.
ALTBACH, Philip G. Advancing the national and global knowledge economy: The role of research universities in developing countries. Studies in Higher Education, v. 38, n. 3, p. 316-330, 2013.
ARBIX, Glauco. DeepSeek: startup que sacudiu o Vale do Silício e abriu novos caminhos para               os       países                        em           desenvolvimento.             Jornal                da       USP,                          19/02/2025, https://jornal.usp.br/artigos/deepseek-startup-que-sacudiu-o-vale-do-silicio-e-abriu- novos-caminhos-para-os-paises-em-desenvolvimento/.
CHAUI, Marilena. A universidade pública sob nova perspectiva. Revista Brasileira de Educação, 24, 2003.
CONNELL, Raewyn. Southern theory and world universities. Higher Education Research & Development, v. 36, n. 1, p. 4-15, 2017.
CUNHA, Luiz Antônio. A universidade crítica: o ensino superior na república populista. São Paulo: Editora da Unesp, 2007.
MBEMBE, Achille. Decolonizing knowledge and the question of the archive. Public lecture, Wits Institute for Social and Economic Research (WISER), University of the Witwatersrand, Johannesburg, 2015. Disponível em: https://wiser.wits.ac.za.
MBEMBE, Achille. Decolonizing the university: New directions. Arts and Humanities in Higher Education, v. 15, n. 1, p. 29-45, 2016.
MARGINSON, Simon. What is global higher education?. Perspectives: Policy and Practice in Higher Education, v. 26, n. 4, p. 112-119, 2022.
MARGINSON, Simon. Has the public good of higher education been emptied out?. Higher Education, v. 85, p. 439-457, 2023.
SALMI, Jamil. The challenge of establishing world-class universities. Washington, DC: The World Bank, 2009.
SANTOS, Boaventura de Sousa; ALMEIDA FILHO, Naomar. A universidade no século XXI: Para uma universidade nova. Coimbra: Almedina, 2008.
UNESCO. Transforming knowledge for just and sustainable futures. Paris: UNESCO, 2022.
UNESCO. Futures of Education: Learning to Become. Paris: UNESCO, 2020.
UNITED NATIONS. Transforming Education Summit: Report 2022. New York: United Nations, 2022.
[2] Nature 542, 391 (2017). https://doi.org/10.1038/542391a

Comentários
Postar um comentário