quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

CORTE DE CUSTOS NA EDUCAÇÃO - As inovações no ensino superior


Foto: Headway/Unsplash

Conheço instituições sérias introduzindo excelentes práticas, mas que penam com a concorrência de mensalidades a R$ 399 e descontos indecentes na Black Friday

Emilio Trindade

Diz um famoso palestrante da área educacional que a aula tradicional é a iguana do ensino superior, já que esse pequeno animal teria vivido na época dos dinossauros e sobrevive até os dias de hoje. Em eventos e publicações, abundam estratégias para inovar na sala de aula e criar novas espécies em substituição à iguana, de forma a preparar os alunos para as habilidades requeridas no século XXI.

Aproveitando o embalo, os executivos pedagógicos do ensino superior, ávidos por piorar a qualidade do ensino, apropriam-se dessas tendências e as utilizam em seus discursos, aparentemente disruptivos e inovadores, como artifício para reduzir custos.

Não sou contra as inovações pedagógicas. Com toda a tecnologia e conhecimento compartilhado atualmente, nós professores temos oportunidades incríveis de gerar aprendizagem significativa, aumentar o engajamento discente, melhorar o desempenho acadêmico e desenvolver habilidades para qualquer século ou profissão. Conheço instituições sérias introduzindo excelentes práticas, mas que penam com a concorrência de mensalidades a R$ 399 e descontos indecentes na Black Friday.

Um professor com capacitação, direcionamento para inovar e condições de trabalho adequadas (carga horária e acesso a recursos tecnológicos) é capaz de criar momentos de aprendizagem memoráveis aos seus alunos. No entanto, quando as inovações vêm de quem faz as contas, geralmente chegam para piorar a qualidade do ensino e tolher práticas que efetivamente inovam, mas não reduzem custos.

Ao longo das últimas décadas temos vivido a transformação do ensino superior para incorporar inovações curriculares e metodológicas e superar o modelo de aula tradicional para modelos mais centrados no aluno. O interessante, porém, é que as inovações incorporadas pela maioria das instituições resultam em redução de custos com professores, em trajetória oposta à qualidade do ensino.

Os executivos pedagógicos, outrora professores e coordenadores, orgulham-se em adotar os cortes de custos com carga horária, por meio de interpretações distorcidas de universidades de referência mundial aplicadas em cursos noturnos com aulas duas ou três vezes por semana, para um aluno que trabalha 44 horas semanais e mal lê vinte páginas por mês.

Nas mãos desses profissionais, os argumentos e estratégias para inovar são frases vazias e oportunistas, mero subterfúgios para uma única coisa: cortar custos com professores e distanciar os alunos da sala de aula e laboratórios. Autonomia discente e aprendizagem centrada no estudante são meros eufemismos para aluno se virando sozinho sem professor, isto é, redução de custos.

Sob o lobby desses executivos pedagógicos, que muitas vezes fazem parte de órgãos influentes nas políticas educacionais, a legislação e os referenciais curriculares para o ensino superior foram alterados nas duas últimas décadas para incorporar as “inovações” que agradam acionistas.

Comecemos com as atividades complementares, estratégia para “diversificar” e “flexibilizar” o currículo do aluno por meio de outras experiências que não as “aulas”. Parece bom, mas na prática resulta em mera redução da carga horária com docentes, oportunidade rapidamente incorporada pelas instituições em seu potencial máximo.

A legislação limitou que a soma da carga horária de atividades complementares e estágio, na maioria dos cursos, não pode ultrapassar 20% do currículo do aluno, o que já foi uma redução de custos bem significativa. O estágio pode ser realizado por conta do aluno em qualquer local, com assinatura meramente burocrática do relatório de estágio pelo coordenador do curso, que também valida as atividades complementares realizadas dentro ou fora da instituição (de preferência o que custar menos). Deveria ter orientação adequada, mas isso fere o princípio da “autonomia” do aluno.

Foi então autorizada a possibilidade de uso de até 20% da carga horária dos cursos presenciais em disciplinas na modalidade a distância para desenvolver mais habilidades modernas como autonomia, autorregulação da aprendizagem, uso de tecnologias da informação e comunicação, entre outras palavras bonitas para um único significado: o aluno sozinho com alguns PDFs (ou os bonitos flipbooks e os modernos HTML5 igualmente superficiais), vídeos rasos, atendimento de tutoria de qualidade duvidosa e avaliação por meio de questões objetivas, cujas respostas são encontradas facilmente em sites de cola.

Me parece que a ojerizada aula tradicional, com um professor circulando pela sala e dialogando com seus alunos, é bem mais interativa que textos pobres e vídeos estáticos de um professor parado como um poste, vestido com um paletó dois números maior ou menor que seu tamanho, tão inovadores quanto um relógio de sol em plena era digital. Os idealizadores do antigo Telecurso 2000 decerto enfartariam ao ver esses vídeos, mas os executivos pedagógicos se orgulham em utilizar os “inovadores materiais”, requentados por anos a fio para amortizar o custo de produção. De inovador, somente os nomes criativos como disciplinas mediadas por tecnologias, “experiência” inovadora, disciplina online, learning student, disciplina híbrida, aprendizagem 2.0, 3.0 e 4.0, disciplinas “interativas”, entre outros jargões igualmente enganadores.

Não sendo suficiente 20%, o marco legal ampliou a possibilidade de oferta a distância para até 40% da carga horária dos cursos, o que significa que a maioria das instituições de ensino superior chegam, efetivamente, aos 40% em todos os seus cursos, incluindo as licenciaturas, direito, engenharias, saúde, arquitetura e outros tantos cursos que carecem de boas práticas para uma formação de qualidade.

Avançando nas inovações curriculares, os legisladores impuseram a oferta de, pelo menos, 10% da carga horária em atividades de extensão, com o objetivo de ampliar as práticas discentes, dar mais significado à formação e estabelecer a relação dialógica com a sociedade. Excelente concepção do fórum de pró-reitores de extensão, os quais jamais imaginaram que o resultado fosse mais decadência da qualidade da formação superior. Os executivos logo viram a oportunidade para reduzir mais 10% dos custos de carga horária de professor, colocando o aluno sem orientação adequada para fazer algum projeto aleatório com a comunidade, ou ainda algum curso ou palestra que deveriam ser contabilizados como atividades complementares.

Somando-se as inovações permitidas pela legislação (20% de estágio e atividades complementares + 40% de EAD + 10% de extensão), um curso de 3200 horas pode ter até 70% de sua carga horária realizada quase sem acompanhamento do professor, restando 960 horas de atividades presenciais que implicam em custo direto com docente. Não incluí o trabalho de conclusão de curso, que em muitas instituições também é feito quase sem acompanhamento e contabiliza uma carga horária irreal de dedicação do aluno.

Os 30% de horas de professor restantes ainda é muito para os acionistas, e os executivos pedagógicos logos arrumaram estratégias para reduzir ainda mais os custos: transformar parte da carga horária presencial em disciplinas comuns a vários cursos, juntando áreas aleatoriamente para promover “práticas interdisciplinares” em turmas de cem ou até mais alunos. Sou péssimo de memória e tenho dificuldade para decorar o nome de quarenta alunos, o que dirá dos quinhentos ou mil resultantes de todas as turmas que são atribuídas a um professor para fechar uma carga horária mínima que garanta sua permanência na instituição?

Entretanto, aí vêm mais inovações. No mundo VUCA (volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade, na sigla em inglês) da era do hibridismo, da educação 4.0, da aprendizagem ativa, do ensino por competências e outras expressões oportunas aos executivos, transbordam estratégias para reduzir o contato do aluno com o professor e cortar mais custos com horas em sala: gamificação, sala de aula invertida, aprendizagem baseada em projetos ou em problemas, aprendizagem colaborativa, educação por competências, entre outros eufemismos para reduzir a carga horária paga ao professor, para que parte do tempo das disciplinas seja o momento de “preparação” dos alunos para as aulas, ou “consolidação da aprendizagem” fora da sala de aula. Afinal, o que conta são as horas de trabalho discente efetivo, e isso não tem relação com as horas de trabalho efetivamente pagas ao docente.

Educação por competências de verdade requer acompanhamento quase personalizado pelo professor, avaliações diagnósticas, observação de competências prévias de cada um dos alunos para se estabelecer atividades de aprendizagem de acordo com seu perfil e habilidades. Há diversos estudos que mostram que a qualidade do ensino cai conforme aumenta o tamanho da turma e, não por acaso de minha memória, trinta a quarenta alunos por turma é o limite para uma aprendizagem de qualidade, desde que com uma carga horária que permita uma convivência por tempo adequado para que o professor possa observar o desenvolvimento de habilidades de forma individual.[1] Porém, na prática, uma disciplina de três horas semanais chega a ter apenas uma hora de interação do docente com mais de cem alunos para aplicar as “metodologias ativas” executivas e inovar no ensino.

E o professor? Com apenas uma hora para cem alunos, um amontoado de conteúdo ou “competências” para dar conta no semestre, a única estratégia que lhe resta é juntar os alunos em grupos para ter o menor número possível de atividades para corrigir. Ou ainda, sacramentar o pacto pela mediocridade e aceitar uma inovadora “avaliação por pares”, deixando que os alunos, que não leram o material previamente e não desenvolveram sequer a competência de discernimento, avaliem os colegas para que ninguém seja prejudicado.

A prova do final do semestre é a mais fácil possível para o professor, cheio de alunos, corrigir em um curtíssimo período de tempo, e suficientemente fácil para que os alunos, que não leram coisa alguma no semestre, sejam aprovados. Afinal, cada um sabe o que faz em sua própria formação, e o mercado dirá quem desenvolveu as competências esperadas pela profissão.

Em uma época em que o ser é mais importante que o saber e o fazer, as estratégias dos executivos pedagógicos retiram cada vez mais o conviver entre aluno e professor, substituindo-o por tecnologias bem aquém do que prometem. Assim, as competências desenvolvidas são a resiliência em aguentar a péssima qualidade do ensino, a habilidade no uso de técnicas para cola tecnológica, criatividade para obter aprovação com o mínimo esforço e autonomia para se virar no mercado de trabalho com um diploma que não vale o papel gasto para sua impressão. Se bem que o diploma agora também é digital.

Os legisladores, formados sem tais inovações, deveriam refletir por que a velha iguana foi tão eficiente em sobreviver aos desafios ao longo dos milhões de anos de sua existência, e avaliar se as inovações, ora colocadas em prática, serão tão longevas e eficazes em promover a formação adequada no ensino superior quanto a ojerizada aula tradicional.

Assim como a iguana não é a mesma da época dos dinossauros, a aula presencial também se adaptou às condições externas dadas pelo avanço tecnológico e as mudanças sociopolíticas no ambiente educacional. Ela deveria ser valorizada como um momento de desenvolvimento de habilidades de convivência e interação no processo formativo, tão importantes para a aprendizagem e para o desenvolvimento de inúmeras competências relacionadas à atuação profissional.


Emilio Trindade é um pseudônimo. O autor deste texto trabalha há mais de quinze anos na docência e na gestão de instituição de ensino superior privada e prefere não se identificar para evitar retaliações.

[1] ANNEGUES, Ana Cláudia; PORTO JÚNIOR, Sabino; FIGUEIREDO, Erik. Tamanho da Turma e Desempenho Acadêmico dos Universitários: evidência para a UFPB. Estudos Econômicos (São Paulo), v. 50, p. 99-124, 2020.Disponível em scielo.br/j/ee/a/tGSb8Tc9V57gnNWjS87WcmP/?format=pdf

WANG, Liz; CALVANO, Lisa. Class size, student behaviors and educational outcomes. Organization Management Journal, v. 19, n. 4, p. 126-142, 2022. Disponível em https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/OMJ-01-2021-1139/full/html

BLATCHFORD, Peter; RUSSELL, Anthony. Rethinking Class Size: The complex story of impact on teaching and learning. UCL Press, 2020. Disponível em https://library.oapen.org/handle/20.500.12657/51776

CHINGOS, Matthew M.; WHITEHURST, Grover J. Class size: What research says and what it means for state policy. Washington, DC: Brookings Institute. Retrieved June, v. 5, p. 2016, 2011. Disponível em https://www.brookings.edu/articles/class-size-what-research-says-and-what-it-means-for-state-policy/

O’NEIL, J. G. The effects of class size on teaching and learning. Massey University, College of Education, Te Kupenga UTE, Mataurango https://www. researchgate. net/Publications/315694783, 2012. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/315694783_The_effects_of_class_size_on_teaching_and_learning

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