terça-feira, 24 de outubro de 2023

"Ressentimentos e preconceitos motivam ataques a escolas"

Familiares se abraçam após ataque a uma escolha no Espírito Santo, em novembro de 2022Foto: Kadija Fernandes/AFP


Escolas são espaços marcantes que conferem identidade, e escolha delas como alvo não é aleatória, diz pesquisadora. Caso mais recente, ocorrido em São Paulo, já é o 11º apenas em 2023.

O ataque a tiros ocorrido nesta segunda-feira (23/10) numa escola da cidade de São Paulo foi o 36º caso do tipo no Brasil. E eles são cada vez mais frequentes: 20 ocorreram entre fevereiro de 2022 e outubro de 2023, sendo que já são 11 somente este ano.

Um relatório produzido por pesquisadores da Unicamp e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), denominado Ataques de Violência Extrema em Escolas no Brasil, vai ser publicado no dia 8 de novembro pela associação Dados para um Debate Democrático na Educação (D3e).

O estudo, que envolveu vários pesquisadores, realizou um mapeamento dos episódios de violência extrema em escolas no Brasil desde o primeiro ataque, em agosto de 2001, até o mais recente, em outubro de 2023.

"Esses ataques intencionalmente ocorridos no espaço escolar caracterizam-se como crimes de ódio ou movidos por vingança", explica a pedagoga Telma Pileggi Vinha, professora na Unicamp e coordenadora do projeto. "São aqueles motivados por ressentimentos, mas também por preconceitos, discriminação, racismo, misoginia, intolerância à existência de um grupo, aversão completa a outra pessoa, sectarismo, extremismo, entre outros sentimentos, concepções e valores análogos."

DW: O ataque ocorrido nesta segunda em uma escola de São Paulo já é o 11º deste ano. Há uma epidemia de violência extrema nas escolas brasileiras?

Telma Pileggi Vinha: Os dados indicam um aumento preocupante na quantidade de ataques em escolas nos dois últimos anos. Dos 36 efetivamente ocorridos em 22 anos, 20 aconteceram entre fevereiro de 2022 e outubro de 2023, sendo 10 no ano passado e 11 neste ano. Esses ataques foram executados por 39 estudantes: 22 alunos e 17 ex-alunos. Trinta eram menores de idade quando cometeram tais atos. As escolas atingidas foram de distintas dependências administrativas, sendo 17 estaduais, 13 municipais e sete particulares. E a maior parte delas não se encontra em regiões de maior vulnerabilidade social, visto que o nível socioeconômico da maior parte das escolas-alvo é médio alto e alto. Em 22 anos foram 102 pessoas feridas e 40 mortos, na maioria estudantes, incluindo cinco atiradores que se suicidaram. As 35 mortes ocorreram pelo emprego de dois tipos de armas: as de fogo e as facas. Além de ferir mais pessoas, os disparos foram responsáveis por 33 dos óbitos e as lâminas, dois. No Brasil, há 178,3 mil escolas de educação básica. O primeiro ataque a uma escola ocorreu em agosto de 2001 [em Macaúbas] na Bahia.

O estudo coordenado por você deve ser publicado em novembro. Quais conclusões já podem ser antecipadas?

O estudo envolveu vários pesquisadores e realizou um mapeamento dos episódios de violência extrema em escolas no Brasil desde o primeiro ataque, em agosto de 2001, até outubro de 2023. Esses ataques intencionalmente ocorridos no espaço escolar caracterizam-se como crimes de ódio e/ou movidos por vingança. São aqueles motivados por ressentimentos, mas também por preconceitos, discriminação, racismo, misoginia, intolerância à existência de um grupo, aversão completa a outra pessoa, sectarismo, extremismo, entre outros sentimentos, concepções e valores análogos. Caracterizam-se também pelo planejamento e o emprego de algum tipo de arma com a intenção de causar morte de uma ou mais pessoas.

Qual o perfil do agressor?

Os autores dos ataques que efetivamente ocorreram eram do sexo masculino, a maioria brancos, com exceção [dos casos] de Realengo [ocorrido em 2011, no Rio] e Poços de Caldas [no início deste mês], com idades entre 10 e 25 anos. Em geral, tinham relações interpessoais mais restritas, com um ou dois colegas, e certo isolamento social. Demonstravam gosto pela violência e culto às armas de fogo, com concepções e valores opressores, [como] racismo, misoginia e ideais nazistas. [São jovens com] ausência de sentido de vida, sem perspectiva de futuro. Buscam notoriedade, reconhecimento e valorização, principalmente daqueles pertencentes à comunidade atingida e o público dos grupos online com que interagiam. Apresentam também indícios de transtornos mentais variados, nem sempre diagnosticados ou tratados. É preciso, contudo, cuidado para estigmatizar, já que a questão envolve uma combinação de fatores complexos associados à leitura do mundo, não podendo ser reduzida ao transtorno em si. Para todos os autores, a escola foi palco de sofrimento. Eles percebiam-se como alvos de bullying e tiveram experiências dolorosas, como humilhação, exclusão e injustiças. Um outro aspecto a ser ressaltado é que a maior parte dos autores foram usuários da subcultura extremista: interagiam com perfis e comunidades virtuais mórbidas e/ou consumiam conteúdos de ódio.

Há um perfil padrão das escolas-alvo?

A escolha da escola como alvo da violência não é aleatória. As escolas são espaços marcantes que conferem identidade. [O sociólogo americano Jack] Katz chama esse tipo de ataque de "massacres íntimos" porque são direcionados a um local ou grupo de pessoas com os quais o agressor teve, ou imagina ter tido, um envolvimento pessoal profundo, uma conexão pessoal, mesmo que não tenha estado lá por um longo tempo. Por meio dessa brutal violência, o autor [do crime] busca realizar uma transformação radical de uma versão social de sua identidade, mudando a forma como acredita ser visto por aquela comunidade.

Por que esse tipo de ataque tem se tornado comum no Brasil?

São vários os fatores interrelacionados. Efeito contágio: a maneira como as mídias noticiam esse tipo de evento, contendo informações sobre o autor, divulgação de fotos e vídeo e das motivações e estratégias utilizadas lhe dão voz e fama, estimulando outros casos semelhantes. A cobertura jornalística de um massacre pode desencadear até três eventos na semana subsequente. A notoriedade funciona não apenas como recompensa para os autores, mas também como um "chamado a ação" para outros que pensam como eles.

O compartilhamento de postagens [em redes sociais] promove efeito semelhante. Nos últimos anos houve um aumento de um ambiente de ódio formado por lideranças, portais de comunicação, redes sociais com discursos conspiratórios, de conflitos e de inimigos a serem combatidos que mobilizam muitas pessoas.

Também fortaleceram-se movimentos que, alegando lutar para evitar a doutrinação política e ideológica nas escolas, incentivaram os alunos a denunciarem ou gravarem seus professores, criando um clima de medo e insegurança. Não se pode [ainda] desconsiderar as influências das interações nos grupos sociais de que a criança e o jovem fazem parte, como os familiares e amigos, em que algumas concepções e valores podem ser opressores, como a masculinidade tóxica, os preconceitos, as discriminações e as violências.

Muitos dos problemas vivenciados estão relacionados à vulnerabilidade social. A insegurança financeira, por exemplo, é um forte fator para a deterioração da saúde mental. Clima e convivência escolar: para os autores dos ataques a escola foi palco de sofrimento, pois eles tiveram vivências de bullying, exclusão, humilhação e injustiças. E faltou [mencionar] a interação com as comunidades mórbidas online que estão na superfície da internet.

E quais seriam as soluções?

Vou pontuar aqui as recomendações que fazemos no relatório: controle rigoroso de armas de fogo e munições; aprovação de projetos de lei que visam uma maior regulação e responsabilização das plataformas digitais; responsabilização de quem divulga pela primeira vez vídeos dos ataques e depoimentos ou manifestos produzidos pelos autores; implementação de um sistema de registro de ataques; fortalecimento do trabalho contínuo de inteligência; legislação que possibilite a liberação rápida de recursos específico para intervenção após esses episódios com apoio financeiro para vítimas e famílias das vítimas; construção de protocolos adequados à realidade brasileira para atuar após os ataques; programas para desradicalizar jovens; [mais espaços de] lazer e socialização; avaliação dos impactos negativos a médio e longo prazo do policiamento dentro das escolas; investimento na Rede de Atendimento Psicossocial; promoção da convivência democrática e cidadão, tanto no âmbito escolar quanto nas redes.

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